Esse texto foi publicado originalmente no Medium, em 01 fevereiro 2019. Refere-se ao projeto sobre|posto.
Apresento recorte da monografia de especialização durante a qual desenvolvi o projeto ‘sobre|posto’. Aqui, apresento a reflexão teórica sobre o processo poético, assim como as referências citadas. O texto na íntegra está disponível online.
Lembro-me de ler, aos 17 anos de idade, um poema de Jorge Luis Borges apresentando uma exposição de fotografia contemporânea. Lembro-me de algumas das fotografias, duas ou três que me marcaram. Não me lembro do nome da artista, mas sim de sua história. Ela trabalhou por alguns meses como camareira em hotéis enquanto viajava pela Europa. Fotografava os espaços antes de arruma-los, registrando e comparando como as pessoas faziam uso de algo tão anônimo como um quarto de hotel. Expôs estes retratos lado a lado, cada um com aproximadamente 120x90cm (se não me falha a memória).
O poema de Borges fala sobre como o homem constrói seus espaços e, ao fim de sua vida, percebe que as linhas daquela construção formam o desenho de seu rosto. Aquelas fotografias mostravam, tanto quanto um retrato tradicional, a identidade da pessoa que não estava mais lá, através do vestígio de suas escolhas e ações. Ao colocar dois retratos distintos lado a lado, suas semelhanças e diferenças se tornavam mais pronunciadas, e podíamos observar as peculiaridades de cada retratado.
Desde que comecei a estudar fotografia, aos 15 anos de idade, me interessa a arquitetura como sujeito. Não o prédio em si, mas como os espaços e estruturas são utilizados e modificados. Como o homem deixa sua marca no espaço, primeiro com ruas e prédios, depois com reformas e intervenções. Como as gerações se sobrepõem especialmente em espaços mais antigos, que sobreviveram diferentes gerações e seus costumes. A intervenção humana sobre o espaço que habita. Não seriam esses também retratos de quem não está mais lá?
Tomo como referência teórica duas das oito categorias propostas por Cotton (2010) para a fotografia como Arte Contemporânea (a saber, “Era uma vez” e “Inexpressivas” […]). Como a própria autora coloca, essas categorias são passíveis de sobreposição, já que não são delimitações absolutas, mas sim “uma culminação de ideias, motivações e experimentos que foram destilados até chegarmos a certos princípios ou conceitos nucleares tendo em vista este livro” (p. 10). Sobreponho essas duas categorias por acreditar que a produção poética que aqui apresento não cabe definitivamente em nenhuma das categorias, mas é na verdade uma sobreposição de características de cada uma delas.
Outro nível de sobreposição se dá na esfera teórica, quando sobreponho a “mirada objetiva em que prevalece o objeto e não a perspectiva que dele tem o fotógrafo” (COTTON, 2010, p. 8) aos “quadros-vivos” independentemente da presença humana, que se reveste de um teor dramático e alegórico, dada a natureza física e arquitetônica dos espaços fotografados” (COTTON, 2010, p. 71). Ao utilizar os dois conceitos acredito estar sobrepondo-os já que se tratam de visões diferentes, mas não completamente opostas. A “mirada objetiva” se dá no momento da tomada da fotografia, no “click”. Já o “teor dramático” entra na discussão quando são realizadas as sobreposições, no momento da pós-produção, da sobreposição.
Apoio-me também na Estética Relacional de Bourriaud (2009), que fala da arte contemporânea como “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (p. 19). Segundo ele, a obra contemporânea não pode ser dissociada de seu contexto histórico-cultural, da sociedade e, muito menos, da cidade. Afinal, a obra é um elemento de ligação entre os sujeitos envolvidos, e a cidade é um destes sujeitos, já que […] permitiu e generalizou a experiência da proximidade: ela é o símbolo tangível, o quadro histórico do estado de sociedade, […] em oposição àquela selva densa e
“sem história” […] que impedia qualquer encontro fortuito mais duradouro. Esse regime de encontro casual intensivo […] acabou criando práticas artísticas correspondentes, isto é, uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o “encontro” entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido (ALTHUSSER apud BOURRIAUD, 2009, p. 21).
No caso das sobreposições aqui apresentadas, sua existência seria impossível sem a cidade, sem a intervenção humana no espaço urbano, e sem a interação do fruidor com o resultado. Afinal, na arte contemporânea os atores são interdependentes: não existe obra sem artista, não existe fruidor sem obra, e não existe artista sem fruidor. Mais especificamente, as sobreposições aqui apresentadas só se realizam com a fruição: elas dependem deste encontro para que exista o diálogo.
Mas dependem também da visão de mundo do artista, no caso eu, e claro do meu orientador, já que este é um trabalho a quatro mãos. Como diz Bourriaud (2009), é impossível dissociar a produção artística de sua sociedade, de sua história e de sua cultura. Muito mais se deve à obra de Bourriaud, mas acredito que este assunto merece um espaço único.
Uma terceira base teórica é a produção da artista gaúcha Dra. Elaine Tedesco, professora da UFRGS. Conheci seu trabalho em 2004, quando ela apresentou sua então pesquisa de doutorado em um Simpósio de Arte Contemporânea. Ela trabalhou sobreposições espaço-temporais, utilizando fotografia e projeções como ferramentas […]. Durante o Simpósio, realizado no campus da UFSM, ela apresentou uma de suas sobreposições, e a ideia me acompanha desde então. Sua pesquisa teórica é meu principal subsidio no assunto de sobreposição.
Durante meus estudos em arte, a falta de uma metodologia clara foi um grande empecilho no meu desenvolvimento. Sentia-me, basicamente, como uma “barata tonta”. Ao estudar metodologias de projeto no curso de design, encontrei uma maneira de estruturar um projeto, saber onde estou no processo, de onde vim e para onde devo ir. Também, estruturar pesquisas poéticas como projetos fechados auxilia na tomada de decisões. Neste caso, o sujeito da pesquisa é bastante específico, assim como os passos a serem seguidos. Existe um conceito norteador, um sujeito comum a todos os projetos, mas cada um tem objetivos específicos.
O sujeito da minha pesquisa poética é a sobreposição na fotografia. No caso do presente projeto, os objetivos são definir métodos para pesquisar a sobreposição fotográfica, e fazer isso através da sobreposição espaço-temporal da minha trajetória, utilizando fotografias que venho produzindo ao longo dos anos.
Escolhi seguir os passos metodológicos desenvolvidos por Munari (2008), por serem bastante flexíveis, e por se assemelharem bastante a um desenvolvimento artístico. Os passos metodológicos propostos por ele são: problema, definição do problema, ideia, componentes do problema, coleta de dados, análise dos dados, criatividade, materiais/tecnologia, experimentação, modelo, verificação, solução. Estes passos foram seguidos, de maneira concomitante, e a metodologia se mostrou bastante eficaz para estruturar a pesquisa.
A produção resultante é uma narrativa que se utiliza da fotografia topográfica para retratar a ação humana sobre o espaço. A narrativa envolvida é a da intervenção humana sobre o espaço, uma sobreposição de tempos que narram a evolução urbana. O resultado é um retrato da sociedade responsável pela produção do espaço. São quadros-vivos, retratos de vestígios de atos humanos cotidianos e pontuais. Esses retratos explicitam a sobreposição de fenômenos, atos de diferentes gerações que adequam o espaço a suas necessidades. As modificações marcam as épocas, modas e costumes vigentes.
Permeando a produção está uma teatralidade, um apelo estético feito através da linguagem e técnica fotográfica, de maneira a atrair o espectador, convida-lo à interação para que complete o evento. Um retrato do cotidiano, amplificando sua beleza, aquela encontrada nas pequenas coisas. Trata-se de uma sobreposição de tempos, um retrato, que é um fenômeno humano, de um fenômeno humano de hoje sobre um fenômeno humano de ontem. Uma arqueologia urbana, como a proposta por Collins.
As sobreposições são pensadas, intencionais. Há um trabalho de edição, intuitivo mas rigoroso. Não seguem uma lógica cartesiana, e sim uma lógica estética. Não são aleatórias. O objetivo é o produto final, a imagem em sua totalidade. Se as referências se perdem, paciência. Afinal, o interessante não são as fotografias isoladas, mas o resultado de sua sobreposição. Aqui o que interessa é tanto o que a imagem final significa, quanto como a imagem final significa.
Mas como essa imagem pode ser categorizada como fotografia, se é resultado de uma sobreposição de fotografias? Cartier-Bresson (2004) diz do tema fotográfico que “no consiste en recolectar hechos, ya que los hechos por sí mismos no ofrecen interés alguno. Lo importante es escoger entre ellos; captar el hecho verdadero com relacíon a la realidade profunda” (p. 20). Dubois (2001) fala que a fotografia pode ser o traço de um real, “dotada, de um valor total singular ou particular” (p. 45). Cita Barthes (apud Dubois, 2001) quando este chama de “referente fotográfico não a coisa facultativamente real a que uma imagem ou um signo remete, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, na falta do que não haveria fotografia” (p. 48).
Neste sentido, a fotografia não é utilizada como espelho do real para registrar a intervenção humana no espaço, mas sim para comunicar o tema, a sobreposição de formas, cores, tempos, ideias e valores que se percebe nos espaços tocados pelo humano. Para amplificar e potencializar suas semelhanças e contrastes, registrar a essência do tempo, não o fenômeno do mesmo. Para apresentar uma possibilidade.
Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional/ Nicolas Bourriaud; tradução Denise Bottmann. — São Paulo: Martins, 2009. (Coleção Todas as Artes)
CARTIER-BRESSON, Henri. Fotografiar del natural. 2ª ed. — Barcelona, GG, 2004.
COTTON, Charlotte. A fotografia como Arte Contemporânea/ Charlotte Cotton; tradução Maria Silvia Mourão Netto. — São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção arte&fotografia).
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 5ª ed. — Campinas, Papirus, 2001.
MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas/ Bruno Munari; tradução José Manuel de Vasconcelos. — 2ª ed. — São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção a).
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Monografia: sobre|posto, uma poética fotográfica